No Grande Sertão, uma Comissão da Verdade
– 3 de fevereiro de 2016
Região descrita por Guimarães Rosa começa, enfim, a investigar crimes da ditadura até hoje ignorados. Quilombolas e outros povos tradicionais reivindicam seus territórios — que regime entregou a latifundiários
Por Ana Mendes, na RBA
Tiros na boca da noite. Em 1967, um grupo de camponeses no sertão mineiro resolveu resistir e lutar pela terra. Seis foram assassinados. “A gente só queria trabalhar, tudo trabalhador”, conta Ursulino Pereira Lima, o seu Sula, hoje com 94 anos. Além dele, restam poucos para narrar os fatos do episódio que ficou conhecido como o Massacre dos Posseiros de Cachoeirinha, em Verdelândia, norte de Minas Gerais. O velho Jadé de Paula, estirado na cama, com câncer de estômago, quer falar, mas só lhe sai uma palavra por vez – o que cabe em uma tragada de ar. Tinha polícia fardada lá? “Muita.” Jadé morreria dois dias depois de conversar com a reportagem, em 3 de setembro. Mas sua história está agarrada. Enraizou.
Em meio à luta no campo, Jadé e Íris tiveram filhos. Antônio de Paula, de 60 anos, é um deles. Antônio, por sua vez, conheceu Dinalva, e mesmo sob condições adversas tiveram Gustavo. Gustavo Prates Santos tem hoje 25 anos e está com uma bala alojada perto do pulmão. Isso porque com o seu pai e 180 famílias ele reivindica o território quilombola Nativos do Arapuim, que está sobreposto às terras de um latifundiário, nas cercanias da região em que seu avô lutou há mais de 50 anos. O percurso individual desses três homens é representativo do próprio fluxo da história, cíclico. A linha do tempo, que atravessa essas gerações, não é reta, crescente e irrepetível, ela é helicoidal. Infelizmente, a história se repete. E, no caso da questão agrária brasileira, é uma espiral de violência.
Em 2016, a Comissão da Verdade do Grande Sertão, sediada em Montes Claros, começará a trabalhar. Entre os assuntos a serem pesquisados estão os casos de violações no campo. Em nível nacional, ainda é bastante incipiente a organização dessas informações. No final de 2014, a Comissão Camponesa da Verdade (CCV) lançou o primeiro relatório apontando cerca de mil casos, mas sabe-se que há muitos mais.
Sobre a questão indígena, quem se encarregou de concentrar os dados foi a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Nesse aspecto, já existem alguns avanços – o maior foi a anistia dada a 13 indígenas Akeiwara, conhecidos também como Suruí do Pará. Eles passaram a receber indenizações em 2014, pois no período ditatorial foram coagidos a trabalhar para os militares na caçada aos guerrilheiros que se escondiam na região do Araguaia e entorno.
Uma população indígena inteira agonizou durante a famosa Guerrilha do Araguaia. Quem sabe disso? As histórias começam a vir à tona sob um ponto de vista marcadamente incomum. O lavrador, por vezes analfabeto, o ribeirinho, o indígena e o quilombola querem contar o que viveram, eles também precisam desenredar os fios da memória.
Entender o momento
É por isso que a comissão que se configura no sertão mineiro, descentralizada dos grandes centros urbanos, vai ajudar a avançar no desenho de um panorama nacional. Algumas histórias já muito conhecidas na região, como o Massacre dos Posseiros de Cachoeirinha (que começou em 1967 e se arrastou por anos – a terra foi homologada apenas em 2014) e o caso de Saluzinho, também em 1967, o posseiro que resistiu durante seis dias dentro de uma gruta, serão revistos. E outras mais aparecerão. É no que acredita Cícero Lima, presidente da Associação Vazanteiros em Movimento: “Nós achamos que essa é a oportunidade de ajudar. Queremos descobrir outros casos para minimizar o que o aconteceu e o que vai acontecer. Sabemos que não há condições de parar (as violações), mas ao menos o povo tá sabendo que existe”.
Revisitar essas e outras histórias ocorridas na época da ditadura tem esse teor: entender o momento atual. “A gente tenta tirar o peso do revanchismo, mas tem sim um acerto de contas histórico a ser feito”, diz a advogada Maria Tereza Carvalho, uma das coordenadoras da Comissão da Verdade do Grande Sertão. A política de distribuição de terra da ditadura, dita reforma agrária, criou latifúndios Brasil afora, e em Minas Gerais não foi diferente. “Se a gente tem hoje fazendeiro dentro de área quilombola, fazendeiro dentro de terra indígena e posseiros que foram expulsos das suas terras, esse período, que compreende os anos 60 e 70, foi essencial pra isso”, explica.
O programa de governo da época, aparentemente, era até “progressista”. Prometia distribuir terras devolutas para pequenos agricultores. Na prática, não foi nada disso. As populações tradicionais e os camponeses pobres viram-se coagidas a entregar sua casa a troco de nada à elite latifundiária. Em Rondônia, no Pará e em outros tantos estados foi assim. A Minas Gerais chegaram ainda levas de gaúchos, financiados pela Fundação Rural Mineira para plantar soja.
Daniel Gomes Ferreira, 47 anos, é o filho mais novo de Saluzinho. A história de seu pai ficou famosa: Salustiano Gomes Ferreira permaneceu vivo escondido em uma pequena gruta durante quase uma semana, em 1967, sem dormir e sem comer, enquanto a polícia jogava bombas de gás e todo tipo de explosivo lá dentro. Ele deu apenas quatro tiros e só saiu quando lhe deram a garantia de que não o matariam. Dizem que o cheiro de gás que exalava de seu corpo causou náusea ao médico que o esperava, na boca da gruta, para prestar atendimento.
Saluzinho passou cerca de quatro anos encarcerado como preso político no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de Belo Horizonte. Durante esse período aprendeu a ler um pouco mais e ampliou sua noção sobre direitos humanos. Antes, ele era um posseiro valente e indignado. “Era difícil naquele tempo falar em direito, pobre não tinha direito. Hoje, graças a Deus, nós estamos aqui falando com vocês. Isso é uma honra. Naquele tempo não tinha isso, era bala, cadeia e porrete”, diz Daniel. A história de seu pai tornou-se livro, Saluzinho, Luta e Martírio de um Bravo, escrito (2014, Editora D’Placido) pelo jornalista mineiro Leonardo Alvares da Silva Campos, que traz um apanhado de recortes de jornais com diversas versões sobre o ocorrido.
Essa história já
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