“Escola Sem Partido”: Uma proposta inconstitucional e doutrinária


A proposta de uma “escola sem partido” parecerá a muitos convidativa no clima político atual, como mostra a existência de 6 projetos de lei sobre o tema tramitando na Câmara dos Deputados Federais (PLs 867/2015, 7180/2014,7181/2014, 1411/2015, 1859/2015 e 2731/2015), com uma única pauta principal: apesar de se pronunciarem contrários à doutrinação (partidária), o que fazem, contraditoriamente, é defender uma escola doutrinária, que inibe a discussão de temas extremamente relevantes nas salas de aula e trata o conhecimento como se fosse algo estanque, blindado dos debates que ocorrem na sociedade. Nas salas de aula, encontramos estudantes das mais variadas origens socioculturais, que, neste salutar ambiente diverso, podem conviver com diferenças de opiniões, conhecimentos, valores, amadurecendo suas próprias perspectivas sobre o mundo. As propostas destes PLs minam essa diversidade.

Consideremos o PL 867/2015, em apreciação pela Comissão de Educação da Câmara. Em seu artigo 3º, ele afirma que “São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”. Proibir os professores de discutirem qualquer assunto que possa resultar em conflito com convicções religiosas, morais e políticas dos pais ou responsáveis não é o mesmo que combater doutrinação partidária. Trata-se de propor uma escola que não lide com valores e atitudes, uma escola esvaziada de sua função social, uma escola que não aborde política (o que é muito diferente de doutrinação partidária) e que não ofereça aos estudantes a oportunidade, fundamental para sua formação cultural, de compreender a diversidade de modos de entender o mundo e se situar na sociedade. Fere-se, assim, um direito fundamental dos estudantes: trilhar com autonomia o caminho de sua formação. Isso mostra as contradições que acometem o movimento “escola sem partido”: no afã de combater doutrinação partidária, compromete-se com a doutrinação religiosa, moral e política, comprometendo a autonomia dos educandos.

A própria denominação “escola sem partido” merece discussão. Na verdade, esse movimento nada tem a ver com um combate a certa orientação partidária. A combinação de várias intenções que nada têm a ver com política partidária sobre a denominação “escola sem partido” trai a intenção de aprovar uma agenda conservadora que causa espécie a pessoas das mais distintas orientações políticas. A própria autoria desse artigo mostra isso. Ele é assinado por acadêmicos com diversas formações e convicções políticas, mas todos contrários às propostas do movimento “escola sem partido”, que tem patrocinado estes PLs, antes de mais nada, inconstitucionais, porque privam professores, alunos, escolas, universidades da liberdade e do pluralismo garantidos no Art. 206 da Constituição Federal: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (…) II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas”. Se os próprios legisladores forem incentivadores do desrespeito à Constituição que juraram seguir e defender quando foram investidos da legitimidade conferida pelas urnas, como acontece flagrantemente nos PLs aqui discutidos, não poderemos chegar à outra conclusão que não a de que o país está regredindo à barbárie.

No site do movimento, aqueles que se opõem ao seu ideário e às suas propostas são ridicularizados, trocando-se os argumentos pela vã ironia, como se os opositores fossem a favor de uma “escola com partido”. Ninguém entre os que assinam esse documento defende uma escola com partido, mas, sim, uma escola com política, debate sobre valores, reflexão sobre o mundo em que vivemos. Não é doutrinação (de esquerda, direita, ou o que seja) ensinar sobre sustentabilidade e relações da crise ambiental com o atual sistema de produção e consumo, ou sobre igualdade de gênero, violência contra mulheres e diversidade de orientações sexuais, ou propor uma educação política que considere a diversidade de valores na sociedade, que se ocupe de todas as tendências políticas que esta abriga, ou ensinar evolução e outras ideias científicas chave para entender o mundo.

Esse suposto movimento “anti-doutrinário” chega ao ponto de defender uma escola sem educação (numa espantosa contradição em termos), mas apenas com instrução. Em seu site, são criticados professores que desejam formar “alunos conscientes”, capazes de “mudar a realidade”, como se uma leitura crítica e informada da realidade fosse um produto indesejável da educação. Numa biblioteca disponibilizada no site, com somente quatro títulos, o livro “Professor não é educador” defende que o professor é um “instrutor”, que deveria “proporcionar conhecimentos e habilidades para a pessoa ganhar seu sustento”, não promover “sentimentos, hábitos”, numa alusão muito vaga ao que seria “educação” (entendido como tarefa apenas da família). Esta é uma visão pobre e desinformada da educação, que a reduz a uma instrução para o mercado de trabalho, negligenciando objetivos educacionais mundialmente reconhecidos por sua importância, que figuram entre as metas da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável, aprovada pela ONU, como a busca de uma sociedade sem fome ou pobreza, a sustentabilidade ambiental e a igualdade de gênero.

Esta visão da educação está em franca contradição com um documento fundante da educação brasileira, que tem uma visão muito mais rica do processo educacional do que o ideário do movimento “escola sem partido”, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Ali lemos que “A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Art. 22), que “O ensino fundamental obrigatório (…) terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: (…) II – a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade” (Art. 32), que “O ensino médio (…) terá como finalidades: (…) III – o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (Art. 35), entre outros objetivos que apontam para algo que podemos realmente chamar de educação. A LDB propõe a formação política dos educandos, e não partidária; aborda a diversidade de valores que caracteriza nossa sociedade, oferecendo ao educando a oportunidade de posicionar-se diante de tal diversidade, tendo em vista, claro, os valores de sua família, mas também preservando a autonomia do estudante, a qual não merece qualquer consideração do movimento “escola sem partido”.

No site do movimento, a mídia é acusada de “mentir” ao afirmar que PLs patrocinados pelo próprio movimento, se aprovados, proibiriam os professores de falar sobre política, teoria da evolução e gênero nas escolas. Contudo, é exatamente isso que esses PLs implicam. Num país conservador como o nosso, se não for possível abordar livremente em sala de aula ideias e valores que possam conflitar com as convicções dos pais e responsáveis, não se poderá mais ensinar evolução, ou falar sobre questões de gênero, ou tratar de educação sexual. Se, ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor for instado a apresentar, como propõe o PL 867/2015, “aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito”, não estaremos diante de outra coisa senão a proposta, defendida pela Direita Cristã nos debates sobre evolução/criação nos Estados Unidos, de ensino com tempos e ênfases iguais sobre criacionismo e evolução. Ora, é claro e evidente que isso atinge o ensino de evolução num país em que já temos projetos tramitando que propõem ensino de criacionismo em salas de aula, em que professores já foram contratados para ministrar aulas de religião desde uma perspectiva confessional no Rio de Janeiro, onde há uma resistência religiosa crescente à teoria científica aceita para ensinar diversidade e adaptação dos seres vivos. Assim, a resposta de Miguel Nagib, um dos ideólogos do “escola sem partido”, de que esse movimento não impede o professor de ensinar a teoria da evolução, por ser uma teoria respaldada pela ciência, nada mais faz do que ocultar um sério problema que, certamente, está associado ao que propõe o movimento. Esta não é mais do que uma resposta equivocada. Temos larga experiência de interação com professores da educação básica, de cuja formação participamos, e nunca encontramos um sequer que use o discurso científico para atacar a crença religiosa dos alunos, o que, segundo Nagib, seria a única coisa que o movimento buscaria impedir. Contudo, esses mesmos professores enfrentam cotidianamente conflitos com estudantes religiosos que não querem que se ensine evolução em sala de aula, que não querem nem mesmo entender uma ideia que rejeitam sem realmente conhecê-la. Esses mesmos professores presenciam cotidianamente conflitos entre estudantes cristãos e estudantes vinculados a religiões afro-brasileiras, atacados por suas convicções religiosas em sala de aula. É uma avaliação demasiadamente simplista do que implicam os PLs inspirados pelo movimento “escola sem partido” afirmar que não trazem problemas para o ensino de evolução e outras ideias científicas.

Por que abordar na escola teorias científicas como a evolução é importante? Ora, porque a compreensão de teorias de importância central no conhecimento científico, como a teoria da evolução, é fundamental para o desenvolvimento do espírito científico e reflexivo dos estudantes, um objetivo educacional também considerado na LDB. Note-se: não se trata de visar que os estudantes acreditem em evolução, ou em qualquer outra teoria científica. Acreditar ou não em algo cabe somente ao indivíduo, é do foro íntimo de cada sujeito. Trata-se de visar que os estudantes compreendam ideias como evolução ou outras ideias cientificas, mesmo que as rejeitem. Afinal, é sinal de racionalidade não acreditar ou acreditar no que se compreende. Acreditar ou não acreditar no que sequer se entende é sinal de doutrinação, de crença cega em alguma autoridade que estabeleceu no que se deve acreditar. É este tipo de educação, visando à compreensão, que se defende quando se propõe uma educação para a formação de pessoas capazes de pensamento crítico e reflexivo, e, portanto, de pessoas com autonomia para decidir como pensar e como agir. Mais uma vez, estamos frente a frente com a contradição de um movimento que, se pretende contrário à doutrinação (partidária), mas não é mais do que a defesa da mais insidiosa doutrinação (religiosa, política e moral).

Por que a proposta aparentemente simpática de se ensinar diferentes “versões”, “teorias” etc. em sala de aula “com a mesma profundidade e seriedade” carece, se analisada mais profundamente, de sentido? Consideremos o exemplo da sala de aula de Ciências, para nos mantermos no mesmo foco. Ali é, evidentemente, um ambiente no qual os estudantes devem aprender sobre as ideias científicas. Para que os estudantes possam compreender tais ideias, até mesmo para terem mais consciência de por que não acreditam nelas, caso seja este o caso, é preciso que as teorias cientificamente aceitas sejam ensinadas com clareza na sala de aula. Abordar de modo sério e profundo toda uma série de outras ideias no limitado tempo disponível nas salas de aulas é algo virtualmente impossível. Isso nada mais faria do que impedir que os estudantes compreendam com clareza qualquer ideia que seja, dentre aquelas abordadas. Essa proposta não faz sentido, porque cada modo de ver o mundo tem, afinal, seu próprio locus de reprodução. Não haveria sentido em se demandar, por exemplo, que no culto de alguma Igreja Evangélica fosse reservado tempo para ensinar, com igual ênfase, ideias evolucionistas, ou de alguma outra religião (digamos, do Candomblé), ou mesmo de alguma outra religião Cristã. É evidente que isso não faz sentido! Pois bem, é igualmente evidente que não faz sentido que, na sala de aula de Ciências, o professor tenha como dever apresentar com a mesma profundidade e seriedade em suas aulas evolucionismo e criacionismos (nas suas mais variadas versões, e não são poucas! Sugerirmos a leitura do excelente The Tower of Babel, de Robert T. Pennock).

Quanto às questões de gênero e à educação sexual, basta considerar o ataque no site do movimento ao que seus defensores chamam pejorativamente de “ideologia de gênero”, para ver que estes conteúdos dificilmente poderiam ser abordados pelos professores. Se o professor se limitasse a uma educação moral de acordo com as convicções dos pais, como propõe o PL 867/2015, isso significaria, num país dominado pelo conservadorismo religioso, a perda das contribuições da educação sexual para a aprendizagem dos estudantes. Como, por exemplo, ensinar sobre medidas preventivas contra DSTs e gravidez indesejada num cenário tão restritivo? O papel da educação sexual no enfrentamento de tais problemas é reconhecido por organizações de saúde de todo o mundo. Este papel está sendo negado, contudo, quando se impede o professor de abordar o assunto com liberdade e, claro, com responsabilidade, na sala de aula.

Uma decisão responsável requer que sejamos orientados por evidências acerca dos problemas que desejamos enfrentar. Estamos diante de PLs que buscam alterar profundamente a educação brasileira, assumindo como justificativa um suposto “grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior” como menciona o PL 867/2015. Mas qual evidência é apresentada para apoiar a tese de que haveria tal contaminação político-ideológica da educação brasileiras? Apenas esta: a “experiência direta de todos os que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 anos”. Não se apresenta qualquer estudo que mostre a dimensão do problema que está sendo diagnosticado, mas, ainda assim, propõe-se alterar toda a educação brasileira?! E ainda assim propõe-se privar o professor da liberdade de ensinar, atingindo o âmago de seu trabalho pedagógico?! Trata-se de uma generalização apressada, apoiada em nada mais que um conjunto de “casos” narrados por pais de alunos. Ora, se um pai se defronta com um professor que tenta doutrinar seu filho, não é necessário que busque dar fim à educação como formação de cidadãos críticos! Que tal algumas alternativas? Uma conversa com professor, talvez? Ou, se isso fracassar, uma reclamação à direção da escola, ou a alguma outra autoridade educacional? Mudar a educação brasileira por causa de um problema desses é querer usar canhão para matar mosca. Mas, claro, a intenção não é esta: o que se está propondo com o movimento “escola sem partido” e os PLs por eles patrocinados é uma reforma conservadora da escola brasileira, sem quaisquer dados que justifiquem tal reforma.

Certamente não é justificável propor tamanha mudança da educação brasileira na ausência de qualquer dado confiável sobre um suposto problema! Se formos nos basear em generalizações apressadas, poderíamos citar os muitos e muitos professores da educação básica que conhecemos ao longo dos anos que jamais visaram doutrinar política e ideologicamente seus alunos. Ou, para continuar no campo da generalização apressada, poderíamos citar professores que conhecemos, ao longo desses anos, que usavam suas aulas para doutrinar religiosamente seus alunos, e até mesmo transformavam suas aulas em cultos de suas religiões. Deveríamos, então, iniciar o movimento “escola sem religião”? Não. Generalização apressada não conta, não serve de nada. Se há preocupação com doutrinação na escola brasileira, política, religiosa, seja qual for, que se faça um estudo sério e bem planejado do problema, um estudo que permita a obtenção de generalizações sólidas, confiáveis. Tomar qualquer decisão que seja sem investigação séria é temerário, quanto mais quando se tratam de decisões como aquelas propostas pelo movimento “escola sem partido”, que comprometem o futuro de um país que necessita, e muito, de educação de qualidade!

Como, afinal, ter educação de qualidade se os estudantes forem incitados, como faz esse movimento, a denunciarem seus professores por suas supostas ações doutrinadoras? Note-se bem, ações julgadas por crianças e adolescentes que podem muito bem não ter nem mesmo clareza do que seria ser “doutrinado”. O PL 867/2015 sustenta ser urgente “informar os estudantes sobre o direito que eles têm de não ser doutrinados por seus professores, a fim de que eles mesmos possam exercer a defesa desse direito, já que, dentro das salas de aula, ninguém mais poderá fazer isso por eles.” Estudantes se tornam, desse modo, denunciadores de seus professores, propala-se o que tem sido chamado pelos críticos do movimento de “ódio aos professores”. No site do movimento, busca-se até mesmo instruir os estudantes sobre como notificar extrajudicialmente professores que considerem doutrinadores. Ainda pior é o que propõe o PL 1411/2015, do deputado Rogério Marinho (PSDB/RN), que criminaliza o professor, ao prever prisão de 4 a 16 meses, além de multa, caso o professor pratique o mal definido “assédio ideológico” em sala de aula. Em tal clima de desconfiança, rompe-se toda possibilidade do contrato didático que norteia a relação entre professor e alunos em sala de aula e, sem o qual, como a pesquisa educacional mostra, o processo educativo está fadado ao fracasso. Este é um bom exemplo de como as propostas do movimento “escola sem partido” podem privar o país de uma educação de qualidade, por conta de um problema que pode, muito bem, não passar de casos isolados, passiveis de solução muito mais simples e menos prejudicial, ou, quem sabe, um problema que existe sobretudo no imaginário ou nos preconceitos de quem o “enxerga”.

Concluindo: o ponto óbvio é que não há nada mais doutrinário do que restringir a informação e o conhecimento ao qual o aluno tem acesso. O ideário do movimento “escola sem partido” e dos PLs por ele patrocinados buscam restringir o leque de informações e conhecimentos ao qual o aluno é exposto. Isso nada mais é do que a defesa da forma mais violenta de doutrinação.

Fonte: www.liberdadeparaensinar.wordpress.com

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