O Feminismo no Brasil: Um papo com Djamila Ribeiro

Djamila

“Ao cunhar o conceito de interseccionalidade, as feministas negras estão afirmando que não pode existir primazia de uma opressão sobre a outra.” (Foto: Reprodução YouTube Alma Preta)
Por Kauê Vieira Do Afreaka
“Baseado no que pauta o feminismo negro, empoderamento é a luta pelo fortalecimento das mulheres de forma coletiva a fim de se mudar espaços e instituições.”
O feminismo no Brasil começou a dar seus primeiros passos em meados do século XIX. Naquele tempo, as mulheres eram proibidas de participar da vida pública e não tinham direito ao voto. Resumindo, elas não podiam integrar a sociedade. Para se ter ideia do domínio masculino (no caso leia-se homem branco), durante o período do Brasil Império a constituição sequer incluía a mulher. Na cabeça de quem pensava as leis brasileiras, elas nem existiam como cidadãs. Para os formadores da constituição republicana de 1889 era desonroso ter mulheres participando da vida política.
Os avanços começaram a surgir com a chegada do século XX. Nesse período aconteceram greves em 1917 e 1922 e a criação do Partido Comunista do Brasil. Além disso, Nísia Floresta e Bertha Luz, consideradas pioneiras do feminismo no país, fundaram a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que tinha como objetivo lutar pelo voto, escolha de domicílio e pelo trabalho de mulheres sem a autorização do marido. A pressão foi grande e o voto acabou sendo legalizado. O primeiro estado da nação a fazê-lo foi o Rio Grande do Norte, em 1927. Quase uma década depois, em 1934, o código eleitoral permitiu o direito ao voto e a representação política às mulheres. Naquele mesmo ano uma representante do sexo feminino, Carlota Pereira Queirós, ganhou o posto de primeira deputada do Brasil. O tempo passou e na década de 1960, marcada por pensamentos libertários mundo afora, as possibilidades foram ainda maiores, como o advento dos métodos anticoncepcionais e o acesso às universidades. Mesmo assim, apenas camadas médias da sociedade brasileira puderam usufruir de tais ganhos.
Uma dúvida surge ao se analisar tais conquistas. Onde estão as mulheres negras?  Por exemplo, Carlota Pereira era médica, escritora e pedagoga; Nísia atuou como educadora e poetisa e Bertha Luz, por sua vez, bióloga. Todas brancas e membras da elite brasileira. Como se percebe, as mulheres negras ainda sofrendo as consequências da escravidão que dominou o Brasil por mais de 300 anos, pouco participaram destes movimentos. Para a escritora Cynthia Sarti, graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, a independência feminina teve classe e cor, pois segundo ela muitas mulheres negras permaneciam ocupando residências e cuidando dos afazeres domésticos para que as brancas de classes mais altas pudessem circular no espaço público. Ou seja, enquanto mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto e ao estudo, as mulheres negras batalhavam para poderem existir.
Foi apenas a partir da década de 1980 que o feminismo negro começa a ganhar força por aqui. Com o II Encontro Feminista Latino-americano, que aconteceu em Bertioga, no litoral paulista em 1985, surge a organização de mulheres negras em busca de visibilidade no meio feminista. Em seguida despontam os primeiros Coletivos de Mulheres Negras e Encontros Estaduais e Nacionais de Mulheres Negras. Desde então nomes como os de Sueli Carneiro, Lélia Gonzales, Núbia Moreira, Luiza Bairros, entre outras, abrem caminho para a representação negra feminina no Brasil.
Com a chegada do século XXI, o aumento da penetração das redes sociais e o acesso de mais negras às universidades, o feminismo negro ganhou outros contornos e atualmente luta por um protagonismo ainda maior em uma sociedade que, mesmo 100 anos após os primeiros passos do feminismo, insiste em ser guiada pelo machismo. Uma das grandes personagens dessa história toda é a paulista Djamila Ribeiro, mestra em Filosofia Política na UNIFESP e dona de uma biografia em prol da afirmação da mulher negra como figura essencial na construção intelectual e social.
Mãe de uma jovem goleira, como a própria gosta de dizer, Djamila tomou consciência logo na infância dos significados de ser mulher e negra no Brasil. “Eu sou filha de militante do movimento negro e desde cedo essas discussões estiveram presentes na minha vida. Mas só fui me perceber como feminista negra quando comecei a trabalhar numa organização de Santos, litoral de SP, chamada Casa de Cultura da Mulher Negra. Foi revolucionário pra mim ver mulheres negras pautando nossas questões, escrevendo, produzindo, fazendo projetos. A partir daí só se intensificou,” explica em entrevista ao Afreaka.
Djamila Ribeiro é mais uma negra em um espaço ainda dominado pela parcela branca e de classe média do Brasil, mas também a prova de que o cenário vem se transformando nos últimos anos. Para se ter ideia da presença negra nas universidades, de acordo com dados do MEC, em 1997 o percentual de jovens negros entre 18 e 24 anos que cursavam ou haviam concluído o ensino superior era de 1,8% e em 2013, após a instauração das políticas de cotas raciais pelo governo federal, estes percentuais já haviam saltado para 8,8%. É importante destacar que a Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) foi a pioneira em seguir a nova proposta de ações afirmativas. Todavia, o grande salto veio há três anos com Lei de Cotas, que instituiu reserva de 50% das vagas em todos cursos de instituições federais de ensino superior levando em conta critérios sociorraciais. Aos poucos, tais medidas estão surtindo efeito e colocando na ordem do dia assuntos que dizem respeito aos homens e mulheres negras e abrindo espaço para novos recortes dentro dos métodos educativos, como a criação de centros de estudos da cultura africana e afro-brasileira. Um destes é o Mapô – Núcleo de Estudos Interdisciplinar em Raça, Gênero e Sexualidade da UNIFESP, construído com a participação direta de Djamila Ribeiro.
“Muitas (mulheres negras) já abriram caminhos nas universidades, mas o caminho ainda é longo. Acredito que com a implementação das cotas essa realidade venha a mudar nos próximos anos. É preciso confrontar esse saber pautado numa lógica excludente. Não se pode ter uma voz única não só falando, mas legitimando a epistemologia dominante. São necessárias uma multiplicidade de vozes. E as intelectuais negras vêm pautando isso,” ressalta.
Ainda na academia, a feminista negra explica que a presença destas mulheres é uma contribuição importante para a produção intelectual e filosófica com uma visão que se descola do pensamento eurocêntrico de homens brancos das classes dominantes.
“Elas já vem contribuindo de modo fundamental ao denunciar como a ciência está atrelada aos valores da cultura, ao negar a neutralidade e desmistificar esse sujeito universal. Há uma grande produção de mulheres negras, mas ainda temos pouco acesso por conta do conhecimento hegemônico ainda ser eurocêntrico, branco, masculino. Ao colocar a mulher negra no centro do debate e a partir desse lugar pensar a sociedade e realizar diagnósticos muitos mais sofisticados, inclusive de ação política.”
Redes sociais, feminismo negro e branco
Não há como negar, as redes sociais se tornaram um dos principais centros de debate e troca de informações do mundo moderno. Foi por meio de páginas do Facebook que diversos grupos de feministas negras e jovens mulheres aumentaram o alcance de suas vozes pela construção de uma nova maneira de se pensar a realidade do Brasil e consequentemente do feminismo. Porém, em muitas conversas ainda surge o questionamento sobre a real necessidade da criação de uma vertente negra dentro do movimento feminista. Para Djamila, o recorte é fundamental para o entendimento acerca das disparidades entre o universo habitado por uma mulher negra em comparação com a branca.
“Nós usamos o termo feminismo branco porque muitas feministas ainda têm dificuldade em pensar recortes, ou seja, ter um olhar interseccional das opressões. O feminismo negro surge para romper com essa universalidade do sujeito mulheres, colocar as mulheres negras como sujeitos políticos e, ao cunhar o conceito de interseccionalidade, as feministas negras estão afirmando que não pode existir primazia de uma opressão sobre a outra, pois agem de formas combinadas e entrecruzadas,” conclui.
Seguida por mais de 30 mil pessoas no Facebook, membra do Blogueiras Negras e colunista do Escritório Feminista da Revista Carta Capital, Djamila Ribeiro não faz vista grossa para a força das redes em prol do empoderamento feminino. “De modo geral a mídia hegemônica ainda ignora nossas pautas e somos praticamente invisíveis. As redes sociais, blogs, sites, são lugares onde podemos existir, ampliar nosso discurso e disputar narrativas. Nesse sentido acredito que sejam espaços muito importantes que instrumentalizam a militância.”

A filósofa faz ainda algumas ressalvas acerca do acesso democrático à informação na web,  criticando o domínio da comunicação exercido pela chamada grande mídia. “Por mais que sejam espaços onde alguns de nós ocupam, cabe lembrar que ainda não é a realidade para milhões de pessoas, os meios de comunicação precisam ser democratizados. Porém, mesmo com esses limites, temos percebidos mudanças importantes e o meio digital se mostra um espaço de ocupação importante para difundirmos nossas narrativas”. Ativista, blogueira, e atuante ferrenhas das mídias sociais, Djamila Ribeiro segue inspirando novas e velhas gerações com seus pensamentos afiados. Ocupar os bancos da universidades, pautar a mídia tradicional com assuntos que digam respeito à vida das mulheres negras, lutar pela democratização da informação e militar por um feminismo com mais multiplicidade de vozes, para ela, parece ser apenas o começo.













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