Aprender a aprender: um slogan para a ignorância



27 de Maio de 2011 por António Paço

Dermeval
«Essa ideia da liberdade do aluno, liberdade de aprendizagem, é um enunciado ideológico. O aprendiz nunca é livre. Ele só é livre depois de dominar o objecto de aprendizagem; e quando domina deixou de ser aprendiz», afirma o pedagogo marxista brasileiro Dermeval Saviani, numa entrevista que lhe fizeram Raquel Varela e Sandra Duarte para a Rubra n.º 3 e que fui repescar para contribuir para este interessante debate sobre a educação iniciado pela Mariana Canotilho. Aqui vai a entrevista completa:
Qual é o papel da escola?
O papel da escola é o de ser o ambiente adequado para que o professor possa exercer da melhor forma possível o seu papel.
E qual é o papel do professor?
O papel do professor é elevar os alunos do nível não elaborado, do nível do conhecimento espontâneo, de senso comum, para o nível do conhecimento científico, filosófico, capaz de compreender o mundo nas suas múltiplas relações e portanto, passar da visão empírica, fragmentada do Mundo, para uma visão concreta, articulada.
Quem são, politicamente falando, os defensores da pedagogia do «aprender a aprender»?
Hoje em dia a pedagogia do «aprender a aprender» é a grande referência da orientação dominante. Tanto que está nos documentos oficiais e internacionais que depois se reproduzem em cada nação, como está nos meios de comunicação onde tentam convencer os professores das suas virtudes. O Relatório Jacques Delors das Nações Unidas sobre educação para o século XXI tem como eixo essa orientação do «aprender a aprender» e os países reproduzem isso nas suas políticas educativas. É uma pedagogia que tem origem na escola nova, no construtivismo de Piaget, que estava apoiado no keynesianismo. Agora foi recuperada, no contexto político do neoliberalismo, pelos pós-modernos. A ideia é que todo o ambiente é educativo – aprende-se em diferentes lugar, em diferentes circunstâncias e … também na escola! O argumento que dão para isso é que aquela visão rígida foi superada em benefício de uma sociedade flexível em que nada se pode prever. A escola não pode formar para 5 ou 10 anos, não se sabe como vai ser o futuro que está em constante mudança. Portanto a escola não deve ensinar algo mas apenas aprender. Mas este novo aprender a aprender já nem sequer dá a importância que os construtivistas davam à ciência. Não sei como é aqui, mas no Brasil introduzem parâmetros curriculares nos temas «transversais» – é como se os temas não fossem objecto desta ou daquela disciplina mas atravessam todo o currículo – educação cívica, moral, ambiental, sexual.
Nos seus livros defende que deve haver uma diferença clara entre currículo e extra currículo?
As actividades devem integrar as actividades da escola desde que elas colaborem para aquilo que é central no currículo. Não se pode apagar essa diferença, como fazem os pós-modernos, para quem tudo tem a mesma importância. Fazer um passeio na cidade e estudar matemática não tem a mesma importância.
O que pensa da memória, da repetição, no processo de ensino?
Esse é um outro aspecto que me parece importante. As teorias psicológicas modernas e pós-modernas tendem a secundarizar a memória enquanto faculdade psicológica e a repetição enquanto estratégia pedagógica. Mas isso é algo que as pesquisas psicológicas de base dialéctica, marxistas, como a da escola de Vigotsky, questionam. Elas mostram o papel da memória e da repetição no desenvolvimento. Eu elaborei algo nessa direcção não pela via das teorias psicológicas mas pela via da observação dos processos pedagógicos. A tese de que a criatividade é o oposto da mecanização, da automatização, não se sustenta porque essa visão dá à criatividade um carácter espontaneísta, como se a pessoa pudesse ser criativa a partir do nada. O que se constata no processo de desenvolvimento das crianças, da própria formação, é que a fixação de mecanismos não é impeditiva da criatividade, pelo contrário, é condição da criatividade.
Um músico só é livre de compor, livre de ser criativo, depois de muitos anos de estudo…
Sim, outro exemplo que dei é o do aprender a dirigir o automóvel. Enquanto não se mecaniza as operações não se é livre de conduzir um automóvel. Eu fui mais longe e generalizei numa espécie de lei pedagógica. O aprendiz nunca é livre. Ele só é livre depois de dominar o objecto de aprendizagem e quando domina deixou de ser aprendiz. Essa ideia da liberdade do aluno, liberdade de aprendizagem, é um enunciado ideológico.
Os alunos devem reprovar?
A reprovação não é uma exigência pedagógica porque a tendência das crianças e dos jovens é aprender. Nesse sentido se organizarmos adequadamente o processo educativo não vai haver reprovação.
É preciso estar na escola o dia todo, como estão as crianças portuguesas, para aprender?
Na educação infantil ou primária não acho produtivo as crianças ficarem 8, 9 horas na escola. Mas isso tem muito a ver com as condições sociais do país em causa – no Brasil a maioria das crianças não tem uma secretária, um lugar para estudar em casa.
O que pensa de políticas educativas como as que se estão a implementar em Portugal, em que os alunos vão passar a ter só um professor até ao 6.º ano?
No contexto em que isto está a ser posto há aí um objectivo político e que concorre para esvaziar as escolas do conhecimento elaborado, científico, que é a sua função. A burguesia tende a esvaziar a escola dos conteúdos mais elaborados mediante os quais os trabalhadores poderiam fazer valer os seus direitos, as suas reivindicações.
Defende que a escola que luta pelo socialismo é aquela onde se ensina o saber da classe dominante à classe dominada? Isto coloca em causa quase tudo o que a esquerda tem vindo a defender a respeito da pedagogia
Essa é uma ideia central da proposta pedagógica que formulei. Eu acredito que ela tem base empírica e teórica. Ela tem base empírica a partir daquilo que observamos no dia a dia. Os trabalhadores consideram a escola algo importante, enviam os seus filhos para a escola na expectativa de que lá eles vão aprender. A expectativa deles é que os filhos estudando adquiram condições que eles não tiveram. No livro Escola e Democracia sintetizo assim a fala dos pais: «Se o meu filho não quer aprender o professor tem que fazer com que ele queira.» Essa frase foi interpretada por alguns colegas como sendo a evidência de que eu defendia uma pedagogia autoritária. Eu respondi a esses sectores a dois níveis: primeiro ao nível da linguagem. Eu disse: «Se o meu filho não quer aprender o professor tem que fazer com que ele queira.» Não disse: «Se o meu filho não quer aprender o professor tem que fazer com que ele aprenda, mesmo que não queira.» Isso sim seria impositivo – se ele não quer aprender vai aprender na marra, vou enfiar goela abaixo! O filho, que não tem experiência da vida, das lutas sociais, é compreensível que não perceba, mas o professor tem condições e obrigação de saber a importância do estudo e mostrar para a criança essa importância.
Mas a nível teórico, uma resposta mais elaborada a essa crítica deve começar pela diferença entre o empírico e o concreto. Comummente se usa o termo concreto como sinónimo de empírico, mas em Marx há uma diferença muito clara. No Método da Economia Política vai-se do empírico ao concreto pela mediação do abstracto. O concreto não é o ponto de partida mas o ponto de chegada do conhecimento. Eu traduzo isso na pedagogia da seguinte forma: parte-se do confuso, das primeiras impressões, para uma visão articulada, uma visão de síntese, pela mediação do abstracto, ou seja, da análise.
Quando o professor se defronta com o aluno ele tem que estar frente ao aluno concreto não ao aluno empírico. O aluno empírico é essa criança que está aí, com essas manifestações que eu capto à primeira vista, que eu capto pelos sentidos na aparência. Mas o ser humano é síntese de relações sociais, por isso eu tenho que o encarar enquanto indivíduo concreto e não apenas enquanto indivíduo empírico. Por isso quando me dizem que tenho que ter em conta os interesses dos alunos eu pergunto: do aluno empírico ou do aluno concreto? A escola nova fica no aluno empírico, por isso devemos fazer o que ele tem vontade e cai-se no espontaneísmo. Agora para o aluno concreto – enquanto síntese de relações sociais – é da maior importância passar da visão de senso comum para uma visão articulada, uma visão científica, ter acesso a conteúdos elaborados. Eu tenho que levar em conta os interesses do aluno concreto e portanto deve-se estruturar um ensino que vai além das primeiras impressões, subjectivas, dos desejos subjectivos que esse aluno tem. Mas ele só vai perceber isso na medida em que o professor lhe mostra, fazendo-lhe ver a importância dos conhecimentos para ele assimilar.
Defende que o conhecimento é um meio de produção e que a burguesia se apropriou dele?
O conhecimento elaborado é um produto do desenvolvimento da humanidade, um produto do desenvolvimento social do homem no processo de produção da sua existência. A burguesia apropria-se disto como se apropria dos outros elementos, mas isto não significa que ele seja inerentemente burguês. Trata-se de arrancar do controle dominante aquilo que são produções humanas, neste caso o conhecimento. Quando a burguesia era revolucionária, na passagem do feudalismo para o capitalismo, fez isso, arrancou o conhecimento das mãos estritas do clero e da nobreza.
E só liberta esse conhecimento na estrita medida em que o trabalhador precisa dele para desempenhar o seu papel no processo produtivo?
A minha posição é que considerar que o saber elaborado corresponde aos interesses dominantes, como fazem os reprodutivistas (ver caixa) é sonegar aos trabalhadores um instrumento de luta e nesse sentido manter os trabalhadores subordinados.
Os alunos portugueses são os piores da Europa a Matemática mas dominam a máquina de calcular desde a primeira classe. Têm Inglês e Informática desde o jardim-de-infância. O que significa para si este domínio da tecnologia combinado com uma absoluta ignorância da ciência?
A educação vai-se cada vez mais reduzindo a operações mecânicas. As máquinas da revolução industrial substituíam a força física do homem, hoje há máquinas que também realizam operações intelectuais. Isso deveria ter como função libertar o homem das funções repetitivas, tanto as braçais quanto as intelectuais, para assim libertar o homem para fruir, pensar, elaborar. Nas condições capitalistas a maioria é colocada na posição de só operar. O que possibilitou a existência dessas máquinas, que envolve matemática avançada, fica restrito a um grupo muito pequeno que frequenta universidades de ponta. O projecto de Bolonha ilustra bem isto, destrói toda a experiência da riqueza universitária europeia, que era um contraponto à americana onde eles têm grandes universidades para formar cientistas de ponta e depois uma grande diversificação de universidades de diferentes níveis.
Nós travamos esta luta, entre uma educação ao serviço da ordem dominante e uma educação que seja enriquecedora do homem. É claro que essa outra educação só se pode desenvolver na medida em que está articulada com aqueles que têm interesse nessa nova educação.
Dermeval Saviani, doutor em filosofia da educação, é professor emérito da UNICAMP (São Paulo, Brasil) e autor de grande número de livros, como Escola e Democracia (Ed. Autores Associados, 40.ª edição, 2008), História da Educação, Pedagogia Histórico-Crítica, Intelectual, Educador, Mestre ou Capitalismo, Trabalho e Educação, entre outros.

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