Licenciatura em educação do campo: fundamental ao campo e à cidade, alvo do Estado e do mercado
Por Lizely Borges
Da Página do MST
O conjunto de medidas adotadas pelo governo de Michel Temer (PMDB) e sua base de apoio, conjuntamente com o avanço do modelo de agricultura baseada no agronegócio, demandam dos profissionais da educação do campo, universidades e movimentos populares não apenas a construção unificada da resistência, mas também ações propositivas a este cenário. Esta é uma das reflexões centrais presentes no V Seminário Nacional dos Cursos de Licenciatura em Educação do Campo, realizado nos dias 13 a 16 de setembro, em Bandeirantes-DF.
Organizado pelo Fórum Nacional de Educação do Campo (Fonec), espaço de articulação dos diferentes sujeitos coletivos da educação campesina, a atividade reuniu cerca de 150 estudantes, professores, coordenadores de licenciaturas de 38 universidades de todas as regiões do país que, conjuntamente com movimentos populares e sindicatos vinculados a questões do campo, teve como objetivo debater e construir ações em defesa da permanência dos 48 cursos de licenciaturas em educação do campo desenvolvidos por 39 universidades no país, e que estão sob risco de progressiva fragilização pela diminuição do papel do estado na educação pública e intervenção do setor privado na política educacional.
Estruturação da licenciatura em educação do campo
A ação para fragilização da educação do campo não é exclusiva dos tempos recentes. Nos últimos quinze anos cerca de 37 mil escolas rurais foram fechadas (Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep). No entanto, em paralelo à crise da agricultura e transição para consolidação do agronegócio, neste mesmo período foram realizadas ações para a estruturação da política educacional para o campo, com importante papel desempenhado pelos movimentos populares.
“O período inicial do Movimento da Educação do Campo coincide com o período de transição que tem sido compreendido como “da crise do latifúndio à consolidação do Agronegócio”. Foi, aliás, este período, de certa fragilidade da aliança das classes dominantes, que possibilitou o crescimento e avanço das lutas pelos direitos no campo”, aponta a professora em licenciatura da educação do campo, Mônica Castagna Molina.
A partir de experiências de cursos de pedagogia da terra desenvolvidas pelos movimentos campesinos e por meio de forte pressão popular, com destaque para a reivindicação unificada pelos campesinos, quilombolas, quebradeiras de côco e ribeirinhos na II Conferência Nacional por uma educação do campo, em 2004, foi instituído, neste mesmo ano, um grupo de trabalho com o papel de elaborar subsídios para a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) na proposição da política ao Ministério da Educação. Com aprovação do desenho das licenciaturas pelo MEC foram desenvolvidas experiências-piloto em quatro universidades.
Dois momentos seguintes ao GT e fundamentais na estruturação das licenciaturas foram o lançamento de editais em 2008 e 2009 pelo MEC com o objetivo de ampliar o desenvolvimento de licenciaturas nas universidades e a construção de normativas. Tanto o Decreto 7.352, de 2010, que instituiu a Política Nacional de Educação do Campo, quanto a Portaria nº 86/2013 que institui o Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO) foram fundamentais para o estabelecimento de mínimas garantias de continuidade da formação, de turmas não mais únicas, e metas ambiciosas no número de educadores formados para os anos seguintes.
A estruturação das licenciaturas em educação do campo, acompanhadas de outras políticas públicas, como Bolsa Família, Luz no Campo e Programa Minha Casa, Minha Vida Rural, ainda que apresentem graves fragilidades colaboraram para alterar progressivamente o déficit educacional. De acordo com o Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), a escolaridade média da população do campo aumentou de 5,6 anos em 2004 para 8,2 em 2014.
Papel da licenciatura em educação do campo
A reivindicação de cursos de licenciatura em educação do campo, de acordo com os movimentos populares, não atende unicamente à superação do déficit histórico educacional rural. A proposta de formação tem como centralidade o estabelecimento de outra relação do sujeito com a terra. Segundo a integrante do coletivo nacional de educação do MST, Vanderlúcia de Oliveira Simplício, não basta o acesso à educação. “Não vale para nós qualquer educação, mas uma educação que forme um sujeito para compreender a sua realidade, a não discriminar os sujeitos do campo e a construir com eles”, comenta.
Mônica complementa que a proposta de educação do campo implica não apenas o acesso pelo campesino ao conhecimento historicamente acumulado, mas também o reconhecimento das realidades do campo e compromissos dos sujeitos na transformação social. Para ela, a educação do campo é muito maior que a educação escolar. Falar de educação do campo demanda necessariamente tratar, no processo formativo, de temas da reforma agrária e da desconcentração fundiária, da necessidade de enfrentamento e de superação da lógica de organização da sociedade capitalista, pela apropriação dos bens naturais como a terra, a água e alimentos.
“O carro chefe da licenciatura é como somos capazes de ajudar o campesinato a construir estratégias de resistência a uma desterritorialização pela ação do agronegócio. Não pode ter licenciatura sem formação de formadores. Tem um perfil do educador do campo. Como a gente vai junto com os movimentos populares construindo junto. A lógica da universidade é essencialmente individualista. Falamos de uma ciência para que tenha mais vida para todos, e não para aparecer mais”, destaca Mônica.
Ela complementa e avalia o papel que as licenciaturas têm desempenhado no curto período de menos de 10 anos de existência. “Apesar das dificuldades, o conjunto das licenciaturas do campo está pondo em movimento no processo de transformação do conhecimento a dimensão da territorialidade, as tensões e constrições enfrentadas pelo campo”, conclui.
O papel de vínculo dos sujeitos do campo com o campo e a luta pela terra dificilmente passam pelas formações ofertadas pelas universidades e escolas urbanas. Vanderlúcia relembra a experiência de jovens que, na falta de cursos de ensino superior na área rural anteriormente à existência de cursos de licenciatura do campo, se deslocavam para a área urbana em busca de formação. “Se formavam e quando voltavam o estudo adquirido não tinha vinculação com a realidade do campo. As licenciaturas cumprem um papel fundamental na formação de profissionais na defesa de um projeto para o campo, defendido pela classe trabalhadora”, diz.
Para construir esta vinculação, a licenciatura tem como eixos centrais a formação em alternância, a articulação das lutas da educação com o conjunto de lutas sociais, o diálogo entre teoria e prática, a heterogeneidade dos estudantes e a formação para a auto-organização, formando sujeitos autônomos e voltados para demandas coletivas.
De acordo com os movimentos populares e especialistas, o ganho deste modelo educacional não se restringe aos sujeitos do campo. O sujeito da área urbana é intensamente afetado pelas políticas educacionais rurais. “A cidade não vive sem o campo, no que consome, na preservação dos bens naturais. As consequências do agronegócio, como a destruição do meio ambiente e da produção de alimentos voltada ao mercado interno, atingem a todos”, enfatiza Mônica.
Ofensiva do Executivo e Legislativo
Os participantes do Seminário manifestaram preocupação com as medidas adotadas e anunciadas pelo governo de Michel Temer. Eles destacam que a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 241/2016, apresentada por Temer em maio deste ano, vulnerabiliza a formação de educadores do campo. A PEC estabelece um novo regime fiscal para gastos com saúde e educação e congela por 20 anos os recursos destinados à estas áreas, reajustados apenas por índices inflacionários. “O governo Temer não vai se pautar pelo cumprimento integral das previsões constitucionais. Ele se pauta pelo mercado. Para o governo e o agronegócio a educação do campo é entrave porque por ela os sujeitos constroem sua própria história”, destaca o coordenador geral da Campanha Educação para Todos, Daniel Cara.
O orçamento aprovado para os cursos de licenciatura em educação do campo para 2016 foi de R$ 26 milhões. A proposta orçamentária encaminhada ao Congresso para 2017 é de R$ 11 milhões, uma redução em mais de 50%.
Para a deputada Erica Kokay (PT), a consequente fragilização da política educacional reforça o argumento de que a área deve ser explorada pela iniciativa privada. “Se as políticas públicas estão congeladas eu abro espaço para a iniciativa privada. Você retira a capacidade do estado em gerir uma política pública. O Estado não tem mais capacidade de sustentar. Então você tem a iniciativa privada que vai intervir e atuar para o que lhe dá lucro”, argumenta. Daniel destaca o avanço das parcerias público-privadas na gestão da política habitacional nos municípios: “Os atores internacionais perceberam que a educação no Brasil é gigante, que tem se tornado mais relevante para as pessoas, que se tornou prioridade e tem fundos volumosos”.
Não apenas a redução do orçamento deve afetar duramente a estrutura e permanência dos estudantes nos cursos de licenciatura. Os especialistas em educação no campo apontam que medidas como o Escola sem Partido (PL 193/2016), do senador Magno Malta (PR), provocará o esvaziamento da função de educador do campo orientado pela perspectiva de educação para transformação. O PL estabelece controle sobre os conteúdos ministrados em sala de aula. Temas como reforma agrária e estruturação da agricultura brasileira passariam distantes das formações. “Há uma tentativa de homogeneizar a educação, desconsiderando as especificidades dos diferentes sujeitos e respectivas demandas educacionais”, destaca a integrante do Fonec, Clarice dos Santos.
Para eles há uma ação deliberada em esvaziar o campo com o fechamento das escolas rurais e fragilização da política educacional, estendendo ao mercado a tarefa de educar e formar os trabalhadores rurais. “Quanto mais hegemônico o modelo de agronegócio, o campo não precisa nem de sujeitos e nem de escolas. Não pensa o campo como produção de alimentos, mas de lucro”, diz Mônica.
Fonte: http://www.mst.org.br/2016/09/20/licenciatura-em-educacao-do-campo-fundamental-ao-campo-e-a-cidade-alvo-do-estado-e-do-mercado.html
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