“A Imitação de Cristo”: depois da Bíblia o livro mais lido 04/12/2016
Ao completar mais de 50 anos de labor teológico, pus-me um desafio: retraduzir a “Imitação de Cristo” do latim medieval, arredondar o estilo no sentido de superar o tradicional dualismo da visão clássica e por fim, acrescentar-lhe mais uma parte escrita dentro da moderna cosmologia que procura articular e incluir todas as dimensões, mais adequada ao espírito contemporâneo. Foi uma diligência minuciosa que me custou dois anos de trabalho. Seria o meu canto de cisne da teologia mais sistemática., o meu “nunc dimitis, Domine” bíblico (“agora posso partir, Senhor”).
O autor é o venerável Tomás de Kempis (1380-1471) nascido na Alemanha. Foi durante toda vida mestre espiritual de jovens religiosos dos Cônegos de Santo Agostinho. Produziu uma obra de profunda espiritualidade que alimentou a cristandade até os dias de hoje, sempre lida, meditada e citada por nomes notáveis como Freud, Jung e Heidegger.
Há mais de mil edições da “Imitação de Cristo”, espalhadas pelo mundo afora, sendo que no British Museum se colecionam mais de mil.
O livro é composto de quatro partes às quais eu ousei acrescentar uma quinta, usando o mesmo estilo do autor. Dei-lhe como título “O seguimento de Jesus pelos caminhos da vida”. O seguimento completa a imitação, de forma que pela imitação se procura alcançar o monte Tabor da alma e pelo seguimento, a planície e o vale onde lutam e labutam os seres humanos.
Tomás de Kempis possuía uma mente livre. Mesmo dentro do espírito da tendência espiritual mais difundida da época, a assim chamada “Devotio Moderna” não se deixou influenciar por nenhuma escola teológica ou tendência mística. Ao contrário, mostra certa distância e também uma velada suspeita de todo saber teológico e teórico e de revelações particulares. O que para ele conta, é a experiência do encontro com Cristo, com sua cruz, com sua obediência ao Pai, com sua humildade, com sua misericórdia, com o amor incondicional e com sua paixão e cruz corajosamente suportadas. O tema do despojamento de si mesmo e de todos os apegos do ego ganham relevância especial a ponto de ter despertado a atenção dos mais argutos analistas da condição humana.
Em que reside a singularidade da Imitação de Cristo? O caminho da “Imitação de Cristo” sublinha o Cristo da fé e suas virtudes: sua humildade, seu amor aos pobres e pecadores, sua compaixão para com os doentes e discriminados, sua atitude face à condição humana que ele compartilhou conosco. A epístola aos Hebreus diz claramente que ele “passou pelas mesmas provações que nós”(4,15), estava “cercado de fraqueza”(5,2) e “aprendeu a obediência por meio do sofrimento”(5,8).
São Paulo vai mais longe ao nos admoestar para “termos os mesmos sentimentos que Cristo Jesus teve: não se prevaleceu do fato de ser Deus, mas por solidariedade a nós assumiu a condição de servo, apresentando-se como um simples homem e humilhou-se até à aceitação da morte de cruz”(cf. Flp 2, 5-8), castigo infame para a época. Ele não se “envergonhou de chamar-nos irmãos e irmãs”(Hbr 2,11) e no juizo final refere-se aos pobres e penalizados conclamando-os como “meus irmãos e irmãs menores”(Mt 25,40).
Estas atitudes são propostas pelo autor aos seus ouvintes para se alcançar um alto nível de vida spiritual. O Cristo fala à subjetividade da pessoa em busca de um caminho spiritual e a leva a descobrir todos os meandros da malícia humana mas também toda a grandeza das possibilidades de conquistar alto nível de vida interior.
Tomás de Kempis, melhor que qualquer psicanalista, entende os meandros mais escusos da alma humana, as solicitações do desejo, as angústias que produz mas também aponta caminhos de como enfrentá-las sempre confiados na graça de Deus, na misericórdia de Jesus e no completo despojamento de si mesmo. Procura consolar o fiel imitador com o exemplo de Cristo e mostra-lhe a alegria inaudita da intimidade com Ele e, por fim, a grandeza da recompensa eterna que lhe está preparada na eternidade.
O livro oferece uma espiritualiidade cristalina como a água da fonte atrás da casa. Orienta e alimenta ainda nos dias atuais a busca humana por um encontro com o Mistério de todas as coisas: o Deus interior e exterior que tudo enche.
Leonardo Boff publicou pela Editora Vozes de Petrópolis, 2016, a “Imitação de Cristo” e o “Seguimento de Jesus”.
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